Foto Borrada

Autora: Saylinn/Elleon
Gênero: Drama
Tipo: Conto
Classificação: Livre
Revisão: Saylinn/Elleon
Capa: Lua Ray



capa

Perante o tédio daquele lugar eu estava em minha cadeira de balanço, enquanto meus colegas se divertiam com um jogo idiota de cartas, estava mais concentrada no relógio da parede.

Já havia dado a hora, eu já estava impaciente, o ponteiro mais fininho voava e me agoniava, quando eu ouvi a doce voz da cuidadora:

— Senhora, seu filho e sua neta chegaram.

Não pude conter o sorriso, me ergui com a ajuda da bengala que estava apoiada na parede, e fui em direção ao meu dormitório com o auxílio da cuidadora, onde os encontraria. Quando entrei vi uma cena clássica.

Meu filho estava preso ao celular, provavelmente falando coisas de trabalho ou qualquer outra coisa que julgasse ser mais importante que me ver, enquanto minha neta correu em minha direção, de mãos abertas e vazias, me abraçando com força enquanto dizia as palavras mais doces do mundo:

— Vovó, senti saudade!

— Que bom que veio pequena, — Ela me ajudou a chegar até a cama, assim, deixei a bengala a beira da mesma. — e você também meu filho, não os via faz tempo.

— Precisa renovar sua definição de tempo, mãe, te ligo todo domingo desde a ultima vez que vim aqui. — E dise isso sem tirar a cara do celular, até que o mesmo começou a tocar. — Ah, com licença.

Meu filho se retirou do meu quarto, mas tive tempo de ouvir uma conversa nada profissional, ou se quer importante, se formar.

— E então vó, finalmente vai me falar? — Minha neta parecia empolgada, tendo apenas dez anos, sentia que minha sabedoria jamais chegaria aos pés da dela.

— Vou minha querida, acho que chegou a hora.

— Então pode começar, eu já fiz tuuudo que a senhora pediu! — Me lembrei das gincanas que eu montava para ela resolver, sempre causava um sorriso no rosto de nós duas, prometi que, se ela resolvesse todas, a contaria o real motivo. — Quero saber por que tem tantas fotos borradas por toda parte.

E ela tinha razão, em inúmeras molduras eu guardava diversas fotos borradas, não importava se estavam na parede com na cômoda, ou até mesmo em suas gavetas, todas elas estavam desfocadas, e isso me causava um sorriso indescritível no rosto.

— Minha neta, — Apontei para as fotos das paredes. — todas essas fotos foram tiradas pelo seu avô antes de morrer.

— É sério? Esse mistério todo para isso? Eu sempre soube que ele não era muito bom de mira... — Ela pareceu meio decepcionada.

— Ei, eu não terminei mocinha! — A repreendi com um beliscão na bochecha. — Ele foi fotógrafo durante toda sua vida, amava o que fazia, para sua infelicidade, logo quando adquiriu sua primeira câmera portátil junto veio... essa mira horrível. — Me forcei a dar um sorriso como se estivesse tudo bem.

— Mas... por que ele só não usou um tripé então?

— Como você é respondona em! Seu pai te ensinou direitinho.

Apertei novamente sua bochecha, dessa vez, do outro lado. Me estiquei até a cômoda e abri a primeira gaveta, retirando de lá a câmera do meu falecido marido. Comecei a prepará-la para tirar uma foto, girando a chave para ajustar o filme.

— Eu pensei em dizer para ele continuar a tirar fotos com o tripé, mas, querida, você não viu como os olhos daquele homem namoravam essa câmera, e mesmo que visse, não conseguiria enxergar o brilho e a profunda felicidade que eu fui capaz de ver. Seu avô sentiu o gosto da liberdade, e depois de prová-lo não queria mais parar. A melhor coisa que eu fiz da minha vida foi posar para essas fotos.

— São só borrões, vó.

— São filha, mas neles eu vejo o movimento. Olhe aquela, — Apontei para uma das fotos sobre minha cômoda. — foi tirada na primeira vez que peguei seu pai no colo. Pode lhe parecer um borrão, mas eu consigo me lembrar de como o peito dele subia de descia quando respirava, de como minhas lágrimas escorreram pelo meu rosto durante o parto, e de como seu avô foi forte o suficiente para, mesmo com as mãos trêmulas, nunca ter derrubado o filho do colo.

— Você vê tudo isso?

— Não vejo de fato, mas é uma lembrança que essa foto não permite que eu esqueça. Quero te pedir um favor, querida. — Ela me olhou curiosa. — Quero que tire uma foto minha agora com essa câmera.

Eu mostrei para ela como faria assim como meu falecido marido me mostrou um dia e, com uma estabilidade aparentemente impecável, ela a segurou, olhou através de seu visor, e tirou a foto enquanto eu dava um belo sorriso.

Desta vez, não foi o fotógrafo que a borrou.

Despenquei na cama, certamente borrando o foco daquela câmera ultrapassada e, ao sentir meus olhos pesarem e se fecharem, pude ouvir as reclamações de minha neta ao não saber como veria a foto depois de tirá-la, mas o som foi substituído pela voz do meu filho me chamando e, em seguida, chamando enfermeiros.

A voz se tornou cada vez mais baixa, a ultima coisa que me lembro é sentir as mãos quentes de meu filho e de minha neta em meu corpo, mas logo a sensação se foi. O que me acompanhara para onde quer que eu estivesse indo, era a felicidade de ter meu ultimo sorriso registrado.

Registrado num lindo borrão, como meu amado fazia.